Assim que desembarquei do ônibus, escuto chamarem pelo
meu nome. O amigo, logo atrás, foi incisivo: “Teu apelido ‘mais antigo’ não te
compromete com os politicamente corretos. Serve tanto para masculino como para
feminino: Lule”. E soltou uma gargalhada. Aliás, libertamos as gargalhadas
minutos antes de assumirmos a labuta. Como nos conhecemos há quase dois anos,
me vi na incumbência de explicar ao amigo a razão da alcunha, como diriam os
antigos.
Pus a explicar, no breve caminho entre a parada de ônibus
(ou ponto, como dizem por terras paranaenses) e o prédio do Ministério da
Saúde: “Quando eu era estudante universitário, em Ponta Grossa, minha primeira
morada foi em uma pensão – que mais se parecia com uma república – assumida pelos
cerca de 26 moradores (capacidade máxima) como Casa Grande e Senzala, devido ao
enorme casarão antigo e seus ‘puxadinhos’ nos fundos. No início do segundo
semestre em que já morava no local, apareceu um sujeito vindo do litoral de São
Paulo, homossexual e negro. Imagina o preconceito a aversão ao cara, isso no
final da década de 1980. Fui um dos poucos que acolheu o rapaz como amigo.
Sujeito raro, de bom gosto musical, de educação acima da média e ciente – infelizmente
– das chacotas e preconceitos. E, verdade, brincava da própria condição (“Não cheguem
perto porque sou gay, eu me apaixono”, e punha-se a rir dele mesmo).
Com o passar do tempo, criou coragem e intimidade para me
chamar por Luli, forma carinhosa de abreviar meu nome. O apelido ‘pegou’ no
meio universitário e, durante a campanha eleitoral para presidente, os colegas
do curso de Jornalismo e do movimento estudantil não perdiam a oportunidade
para trocar o refrão do ‘Lula lá’ pelo ‘Luli li, brilha a sua estrela’. Admito
que o sangue fervia, subia à cabeça, mas consegui manter o controle e prometi,
a mim mesmo, que encontraria o antídoto às chacotas (naquela época sequer se
sabia da existência do tal bullying ). Após algumas tentativas, uni as
primeiras sílabas do meu nome e sobrenome (Lu, de Luciano; Le, de Leite). Agora,
podem me chamar por Lule, anunciava aos quatro cantos.
O apelido ‘pegou’, a ponto de poucos me conhecerem por
Luciano, nos corredores da universidade ou no movimento estudantil (sim, também
nas salas de aula, quando eu as visitava)”.
O amigo riu e disse: “É, o Lule não fica mal para ninguém
e pode ser usado em qualquer gênero”. Sim, como cantava Pepeu Gomes, “no
masculino e no feminino”. Muitos contemporâneos, ao me reencontrarem, já me
perguntaram com reservas se “ainda aceito ser chamado por Lule”. Lule, sempre!
Nem qualquer titulação, nem qualquer elevação profissional e sequer o tempo
serão capazes de obstruir o Lule.
Em tempo: contei ao amigo sobre as provocações vindouras, à época, de um amigo do movimento estudantil que, para me cutucar, escrevia na lousa "Lully", em lilás, para organizar a ordem de fala de cada companheiro. "Não vou falar, passo a vez, não sou 'Lully', sou Lule". Era bronca temporária, eu era e sou Lule de qualquer jeito.